segunda-feira, 16 de outubro de 2006

Em Roma sê Romano! Em Timor sê Rai Nain Timor... (2004)




Sendo antropóloga achava que, para além de todas as vacinas que temos de tomar antes de partir em missão para os trópicos, já possuía uma: a do choque cultural. Tal pressuposto tem eventualmente raízes na ingenuidade e inexperiência. Pode também ser uma mistura de ambas, condicionada ainda por uma imagem romântica passada pelo testemunho literário de vários antropólogos e autores de áreas congéneres. Está claro que parte da responsabilidade da imagem idílica do «bom selvagem» era minha.

Antes da partir para o outro lado do mundo fiz pesquisa e contactei algumas pessoas que por lá passaram em acção humanitária, pedindo-lhes opiniões, conselhos, testemunhos da sua vivência naquela que agora é a mais jovem nação do mundo. Esta vacina estava então reforçada! Assim pressupunha eu… Para além de «beber» as experiências alheias, comecei a preparar o espírito e igualmente o corpo para a mudança. Retirei-me por alguns dias para uma casa no interior de Espanha, cortei o cabelo (mais curto ainda que há alguns meses atrás) e retirei a cor vermelha pintando por cima com o tom original. Na noite anterior à viagem preparei a mala com apenas o essencial.

Quando me encontro fora de Portugal, num contexto cultural diferente, invade-me uma utopia. Como se pudesse esfregar uma lâmpada mágica e me fosse concedido o desejo de me transformar fisicamente de forma a que não se notasse que sou estrangeira. Gostaria de poder vivenciar as outras culturas sem a condicionante que a minha presença impõe pela diferença de fenotipo. E em Timor não foi diferente: de novo fui invadida pela utopia.

Concerteza que a Antropologia contribuiu para o facto de, quando em solo timorense, tenha desenvolvido um esforço por “pensar, sentir e agir” como os seus autóctones, principalmente os do sexo feminino. Estava, contudo, consciente de que o meu aspecto ocidental não iria facilitar, correndo o risco de passar pelo ridículo do folclórico ao expressar essas intenções através do uso da sua indumentária: com uma lipa (pedaço de tecido indonésio com desenhos e cores fortes que se enrola à volta da cintura), uma t-shirt e um par de chinelos de dedo. Tinha uma tal vontade de vestir a pele dos locais, que decidi materializar essa necessidade. Na primeira viagem Dili-Los Palos (onde se ia implementar o projecto) paramos no mercado de Baucau onde comprei uma lipa. No dia seguinte fomos convidados para estar presentes numa cerimónia que iria ter lugar numa aldeia daquele distrito, onde se iriam reunir as mulheres vítimas de tortura nos tempos da Indonesia. Estava hesitante se havia ou não de ousar usar já as suas vestes. Temia que interpretassem como um abuso: uma «malae» (estrangeira) vestir como uma mulher timorense. Segui a minha voz interior e fui até à cozinha onde se encontrava naquele momento uma senhora timorense. Pedi-lhe que me ensinasse a enrolar e amarrar o pedaço de tecido à volta da cintura, de forma a que não caísse enquanto andava, ou no momento de me levantar de uma cadeira. Com muito orgulho ela exemplificou, fazendo as manobras já automáticas no tecido ainda duro por ser novo. Vesti uma t-shirt e os chinelos de dedo e já me sentia uma mulher timorense! O processo de transformação dava-se por terminado naquele preciso momento!!!.... Sentia-me muito bem naquela pele. De tal forma que passados poucos minutos tinha esquecido o que levava vestido.

No momento em que sai de casa para subir para o carro e seguir viagem, enquanto distraidamente descia as escadas de casa, ouço gritos. Erguo imediatamente a cabeça para perceber o que se passava. Era a irmã Lúcia, Madre Superiora Canossiana, que nos vinha chamar para seguirmos viagem. Percebi então o que estava a dizer, não só pelas palavras e gritinhos, mas pela sua linguagem corporal. Juntava as palmas das mãos como se estivesse a rezar, enquanto balançava a cabeça para cima e para baixo, dizendo: «Obrigada. Obrigada. Que gesto bonito vestir-se como uma timorense. Bonita barak!» (Barak quer dizer «muito» em tétum). Interpretei aquela reacção como o sinal de que a iniciativa de assumir a identidade cultural timorense pelo uso dos seus trajes quotidianos era bem aceite, vindo de uma entidade tão legitimadora naquele país como a das Madres Canossianas.

Seguimos então viagem. Estava muito animada, esquecendo de seguida o episódio, já que a beleza luxuriante da paisagem me captou a atenção. A partir desse dia, aquelas eram as roupas que usava em todas as ocasiões, mesmo nas reuniões institucionais quando ia a Dili.

Até que um dia, algo de insólito se passou. Depois de ter acedido várias vezes ao edifício da USAID (cooperação americana), chegou o dia em que os seguranças do edifício não me permitiram entrar nas suas instalações. Não percebi ao princípio o que se passava. Não compreendia a razão pela qual mantinham o portão fechado, até que deixaram outras pessoas passar, excepto a mim. Mais confusa fiquei… Pedi então que me explicassem claramente o que se passava. Até que finalmente percebi. Fiquei indignada com a justificação. Não com os guardas timorenses que me impediam de passar, já que estavam unicamente a cumprir ordens. Estava indignada com a natureza da ordem. Não me autorizavam entrar porque foram criadas novas regras de acesso às instalações daquela entidade. A partir dos serviços centrais em Washington D.C. saiu a decisão que só poderia entrar quem se apresentasse devidamente vestido!!, isto é, à «ocidental». No meu tétum (ainda com um vocabulário limitado, mas que servia para passar a mensagem) perguntava-lhes o que achavam. Como poderiam ter criado aquela regra se a maioria dos timorenses não tem dinheiro para comprar a roupa que exigem que se vista? Mais incrédula fiquei quando me foi explicado que a regra era para todas as instalações à volta do mundo dos edificios da USAID. Sabendo que em Timor, cada pessoa vive em média com um dólar por dia e que em muitos países do mundo existe igualmente pobreza extrema, como podem tomar tal decisão!!! Como?! Fiquei de tal forma indignada que dei meia volta e fui-me embora. Naquele dia não regressei ao edifício.

A indignação que sentia naquele momento não me permitiu perceber que finalmente, de certa forma, me tinha transformado num local. Fui tratada exactamente do mesmo modo que todos os outros timorenses porque me apresentava como uma autóctone. A vida encontra meios hábeis para satisfazer os nossos desejos!