sexta-feira, 15 de setembro de 2006

A estoria do crocodilo (2004)



«Um dia um jovem rapaz encontrou um crocodilo bebé numa lagoa que se esforçava por chegar até ao mar. Tentava, tentava, mas não conseguia porque já estava muito cansado. O rapaz, com pena, pegou nele e levou-o até ao rebentamento das águas. O crocodilo ficou tão agradecido que lhe prometeu que sempre que quisesse viajar bastava chamá-lo e ele o transportaria no seu dorso. Assim, o rapaz quando tinha vontade de viajar deslocava-se até à beira-mar e chamava o crocodilo três vezes. Ao longo dos anos fizeram inúmeras viagens juntos, fortalecendo-se uma amizade. Mas o crocodilo não deixava de ser crocodilo e o rapaz não deixava de ser humano, pelo que de vez em quando o crocodilo sentia um desejo incontrolável de comer o rapaz. Incomodado com esse impulso quase incontrolável o crocodilo decidiu desabafar com os outros animais, que indignados lhe disseram para não comer o rapaz, já que tinha sido muito generoso com ele ao salvar-lhe a vida. O crocodilo sentiu-se muito envergonhado, decidindo controlar o seu ímpeto e continuou a transportá-lo em incontáveis viagens até ficar muito velhinho. Mesmo assim, sentiu que nunca conseguiria compensar a generosidade do rapaz e antes de morrer decidiu transformar-se num pedaço de terra onde o rapaz lá poderia viver. Esse território é a ilha de Timor, que ainda hoje tem a forma do crocodilo, estando povoado pelos descendentes do rapaz que herdaram as suas qualidades de generosidade e amizade e o sentimento de gratidão do crocodilo». Hoje em dia os timorenses chamam ao crocodilo «avô» e sempre que atravessam o rio gritam: “Crocodilo sou o teu neto, não me comas”. Este mito caracteriza de alguma forma o timorense. Ajudou-me a perceber melhor algumas atitudes deste povo que em muitas ocasiões nos conquista e noutras nos atemoriza, com reacções que custam a encaixar nos padrões culturais de um ocidental. Esta lenda permitiu-me interpretar a simpatia espontânea do timorense, a sua postura humilde e disponível e a sua impetuosidade revelada em algumas situações que (nós, como ocidentais, não percebemos muito bem porquê) deixa o seu lado “selvagem” tomar lugar. No contacto com este povo, assisti a momentos em que o timorense deixava emergir por vezes o personagem do crocodilo, outras vezes do rapaz.

Depois de alguns anos a trabalhar numa organização humanitária internacional, desenvolvendo principalmente projectos de âmbito nacional na zona do grande Porto, em Março de 2004 chegou o momento de fazer as malas e partir até ao outro lado do mundo. Timor era o destino final... Timor encontra-se de novo um pouco escondido. Não me refiro apenas à dimensão geográfica. A distância é tornada mais longínqua pelas nossas frágeis memórias. Mas quem outrora passou por este pedaço de terra em forma de crocodilo não é capaz de a esquecer. Timor tem uma magia que só pode ser percepcionada pela experiência e traduzida pela saliva quente que trespassa entre os dentes e a língua. Por isso antes de partir fui ao encontro de quem por lá passou em funções humanitárias, deserta e sedenta que me sentia de relatos de experiência, isto é, de experiências contadas na primeira pessoa. Ouvi as suas histórias, vivências e sugestões de como preparar a viagem (e aqui não falo da de avião!). A minha experiência concreta deu-se no âmbito da implementação de um programa de saúde materno-infantil onde levava na bagagem o manuscrito de um projecto, um punhado de recomendações, algumas trocas de roupa e pouco mais, despindo a pele que tinha, revestindo-me em parte com a dos timorenses. A transformação começou a dar-se ainda por cá. Primeiro retirando a cor vermelha do cabelo, pintando com o tom original; no terreno vestindo a lipa (peça que as mulheres e os homens timorenses habitualmente usam e que se assemelha a uma larga saia que se enrola à volta da cintura), bem como uma t-shirt ocidental comum e chinelos de dedo. Mas os hábitos timorenses não conseguiam ocultar a minha proveniência. Continuava a ser uma mulher, estrangeira, branca, portuguesa, humanitária, antropóloga e sozinha em missão. Mulher numa cultura em que os homens têm o papel principal e a mulher se vê remetida a um papel secundário e inferior; estrangeira cujo termo tem uma carga de progresso e “dinheiro em abundância”; branca que é sinónimo de exotismo; portuguesa faz subir na classificação de riqueza; humanitária sobe ainda mais um degrau neste patamar de abundância, dando-lhe a tónica de responsabilidade e obrigação do dar, no sentido de equilibrar o desnível existente entre os países ricos e pobres; antropóloga algo de estranho e erudito; sozinha sinónimo de maior fragilidade - o que nos faz voltar ao início e reforça ainda mais o tom de vulnerabilidade, porque sou mulher. Ingredientes suficientes para desencadear nos descendentes do rapaz, ora o «crocodilo» ora o «rapaz».

Nas preparações para a partida em missão faz parte da lista de coisas a fazer ir à consulta do viajante onde passamos por uma série de exames médicos e as habituais vacinas que ninguém gosta. De tantas vezes nos picarem a agulha nos braços, quando saimos da consulta mais nos sentimos um coador! Feita uma adequada pesquisa do povo e sua cultura, equipando-me dos conhecimentos técnicos, auscultando os relatos das experiências na primeira pessoa de quem por lá passou em contexto humanitário, despindo os ícones ocidentais vísiveis e não visíveis, tomando as precauções clínicas e sanitárias, pensava que tinha efectuado um bom «trabalho de casa». Aliado a tudo isto com a minha formação de base e contacto cultural noutros cantos do planeta tinha a ilusão que possuia a vacina mais poderosa: a vacina contra o choque de culturas... É fácil perceber que em pouco tempo essa ingenuidade foi substituída por outro choque: o choque com a realidade. Não será também difícil concluir que afinal o feitiço do mito do crocodilo não deixa o estrangeiro escapar dele, e que tanto o autóctone como o visitante ora vestem o personagem do rapaz, ora o do crocodilo...

O momento em que mudei as lentes para ver com outras tonalidades o que se passava à minha volta teve lugar no fim do primeiro mês de estadia. Até essa altura tinha dificuldade em manter os maxilares fechados, do deslumbre causado pela beleza que me rodeava: a natureza luxuriante na época das chuvas, a riqueza cultural, a diferença observada em cada relance... Até que fui colocada à prova pela primeira vez. Tendo que abrir um concurso de empreitada para construção de uma casa para acolher mães e crianças, no momento em que foi anunciada a empresa vencedora as restantes treze fizeram-me uma visita surpresa ameaçando protesto. Eram bastantes homens dispostos em círculo, fazendo questão de demonstrar o seu desagrado, tanto através de linguagem verbal, como não-verbal. Estavam zangados e armados com catanas, fazendo-se expressar num tom pouco amigável, alegando irregularidades nos métodos de selecção. Senti-me literalmente entre a catana e a parede. Estava consciente da vulnerabilidade da minha condição num país em que ninguém me conhecia e com todas as agravantes já enumeradas: mulher, estrangeira, ... Estando nesse momento em reunião com a empresa vencedora, não os recebi nesse dia e marquei encontro para o seguinte. Com os ânimos mais calmos explanei-lhes de uma forma bem peremptória, e sem margem para dúvidas, as razões técnicas que levaram à eleição dos vencedores. Tanto estes homens como eu percebemos que aquilo que se vê a olho nu conduz-nos a erros de avaliação, mesmo que os mecanismos internos de compreensão de ambas as partes sejam difíceis de descortinar. Eles pensavam que conseguiriam inverter os resultados a seu favor porque estavam perante uma mulher, estrangeira, branca, portuguesa, humanitária, antropóloga e sozinha em missão. Eu deixei que a violência e ira que expressavam me levasse a crer que continuariam com a sua postura, mesmo no momento da minha partida ao fim de nove meses. Para minha surpresa alguns daqueles que me fizeram temer pela vida, no momento da despedida eram meus aliados no propósito que me levou até à ilha em forma de crocodilo: diminuir as mortes das mães e das crianças num distrito com mais de 60 mil habitantes.

1 comentário:

quickfreddie disse...

sinto inveja de não poder estar aí a sentir esse povo da mesma forma...

:D