sábado, 30 de dezembro de 2006

O sorriso é amor

Na primeira missão em Timor, a senhora timorense que tratava das lides da casa, depois dos primeiros dias de convivência decidiu fazer uma pergunta que me pareceu trazê-la na mente há alguns dias. “Menina Sónia, porque está sempre a sorrir?”, perguntou a D. Silvina no seu português um pouco perdido no tempo pelos vários anos de proibição da utilização da língua portuguesa durante o tempo de ocupação Indonésia. Não esperava aquela pergunta, ao que espontaneamente lhe respondi: “Pergunte à minha mãe, foi ela que me fez assim!”. Deu uma grande gargalhada e continuou a reagir ao meu sorriso quase permanente com uma luz especial nos olhos.

O sorriso faz parte de mim, como a cor da minha pele, do meu cabelo ou dos olhos. Ao longo dos anos fui mudando de aspecto pela forma de vestir, maquilhar ou o corte de cabelo. As pessoas deixavam de me conhecer por essas alterações estéticas, mas reconheciam-me imediatamente assim que nos cumprimentávamos e naturalmente o sorriso saia de encontro aos seus olhos.

No contacto directo com as pessoas simples o sorriso tem uma potência ainda maior. Elas sabem reconhecer os sorrisos sinceros e descomprometidos e, na maioria das vezes, retribuem-nos imediatamente com outro sorriso ainda mais rasgado. O sorriso é o primeiro momento de ligação com os outros, é a chave para entrarmos no coração dos que nos rodeiam.

Hoje, uma colega de trabalho que me conhece há apenas um mês e meio reclamou que hoje ainda não me tinha visto sorrir (e tinha acabado de me encontrar). Reagi ao seu comentário sorrindo, ao que ela contestou: “Agora está melhor!”. O amor que temos a cada ser humano com quem nos cruzamos canaliza-se também através dos nossos sorrisos espontâneos. E quando não o fazemos, os que nos rodeiam relembrar-nos-ão que lhes está a fazer falta a sua dose do dia.

sexta-feira, 29 de dezembro de 2006

A época natalícia em Timor


Com algum lamento vos digo que não passei o natal tão junto dos timorenses como desejaria. Entre viagens da capital à ponta leste do país (e vice-versa), falo do seu Natal como uma estrangeira atenta, mas distante do seu quotidiano.

Posso partilhar convosco o que aqui pude observar, mas que é certamente uma descrição muito à quem do que realmente os timorenses vivem.

Uma das manifestações mais evidentes são os presépios montados nas bermas das estradas junto das populações e/ou (no caso de Dili) em zonas em que há circulação de gente e carros (como rotundas). Os jovens e crianças tomam a seu cargo a tarefa da sua montagem. Orgulham-se da sua “obra de arte” e demonstram-no com a sua presença no local durante grande parte do dia. Existe um espírito competitivo saudável que se traduz na panóplia variada de materiais e mecanismos que adicionam à sua montagem, seja com estrelas penduradas em locais altos, ou com iluminações ou por exemplo com música incluída, onde depois se divertem a dançar.

Em Dili existe outro passatempo adicional que são os engenhos explosivos que as crianças fazem explodir desde sua casa e ruas da cidade. Trata-se de uma prática perigosa que pode causar acidentes graves.

Comparar o natal lusitano com o timorense é algo difícil. Primeiro porque o clima é tropical, para quem está habituado à época natalícia numa parte do globo com quatro estações, em que Dezembro é pleno Inverno. Os pequenos fogos de artifício dão-lhe igualmente um ar de ano novo, Carnaval ou S. João. A maior diferença será, contudo, estarmos longe dos nossos familiares e amigos. Por isso, a todos vós vos envio um xi-coração bem forte e quentinho.

terça-feira, 26 de dezembro de 2006

O reencontro

Esta segunda missão em Timor fez-me regressar ao ponto de partida: ao momento em que há dois anos atrás - neste mesmo país – compreendi que a acção humanitária é a minha vocação.

O regresso trouxe-me ao reencontro…

Quando estamos no caminho da luz a alma desperta, a paz preenche-nos e estamos de bem com a vida. Abre-se um feixe de lucidez e harmonia interior que nada perturba: nem o calor extremo e humidade do ar, nem as pessoas inquietas com quem cruzamos.

A quem deseja ser feliz ao desvendar um sorriso nos outros,
A quem deseja seguir o caminho da ajuda ao próximo,
A quem deseja partir nessa viagem,
Segredo ao ouvido: vem, junta-te a mim!!!!!!!!!!!!!!!!!!

Na tua mala de viagem coloca:
Duas mudas roupa e um par de calçado,
Uma mão cheia de humildade
Outra cheia de amor e alegria
Um livro em branco (onde na primeira página colocas todos os teus sonhos e nas seguintes vais rascunhando os passos para lá chegares)
E um saco repleto de fé

Mas… antes de partires não te esqueças de:
Deitar fora tudo o que é supérfluo, seja de natureza material ou imaterial
Perdoar os teus erros e os dos que te estão próximos

Não te posso dizer que o caminho é fácil, não te posso enganar…
Mas posso afirmar que todas as dificuldades são apenas pedras no caminho que, à medida que vais afastando, cresce em ti uma força cada vez maior que te impele a seguir por caminhos ainda mais pedregosos. Irás reparar que quando olhares para trás, as pedras desse caminho transformar-se-ão em bonitas flores. Porque cada dificuldade que (ultra)passares tornar-te-á mais forte e capaz de enfrentar novos desafios. Porque serás capaz de transformar a dor em harmonia e amor à tua volta e em todos os que tocares.

E quantas mais flores deixares no caminho, mais felicidade encontrarás! Olha para mim. Mais feliz não poderia estar :)

domingo, 26 de novembro de 2006

O regresso

Depois de dois anos de ausência vi-me conduzida de novo a Timor, em Novembro de 2006. A viagem tomou a forma de peregrinação, como se fosse uma metáfora para a grande jornada que me espera daqui em diante… Depois de mais ou menos três dias de viagem regressei finalmente à terra em forma de crocodilo, que me recebeu de braços e sorrisos abertos como outrora. Os tempos agora são outros. Vive-se um clima de alerta, principalmente na cidade de Dili, onde confrontos amiúde têm lugar. Vive-se, contudo, durante o dia um quotidiano normal. As lojas estão em funcionamento, o frenesim das ruas amontoadas de carros, motorizadas, gente, vendedores, … Observar as pessoas é um dos meus maiores prazeres. Aprecio cada gesto e cada olhar. Os timorenses têm um sorriso espontâneo, aberto e carinhoso. É fácil apanhá-los distraídos enquanto desempenham alguma tarefa, momento em que emerge um semblante triste, melancólico… O sorriso e riso dos timorenses dizem muito a seu respeito. É uma forma de comunicação. O riso com pequenas gargalhadas tem diferentes significados, dependendo da forma como é manifestado pelo interlocutor.

Cheguei com outra missão em mãos. Dar apoio directo às populações, mas durante o período de eleições. Aguardo a decisão da colocação num dos distritos do país na área rural. Até lá vou frequentando as aulas de tétum, de forma a melhorar as competências linguísticas, que são fundamentais no contacto directo com os autóctones.

As sensações são variadas neste reencontro com o povo das duas caras (ora crocodilo, ora rapaz – ver a “Estória do Crocodilo”). O corpo precisa habituar-se às elevadas temperaturas e humidade do ar. A respiração torna-se mais difícil, as roupas colam-se ao corpo, as pernas parecem pesar mais, o pó circula no ar, os insectos importunam os movimentos sempre que tentam provar o sabor da pele ou sangue, o sol queima a delicada pele dos caucasianos.

Se por um lado o corpo vê-se sujeito a um novo ambiente que lhe parece hostil, por outro o espírito sente igualmente os novos desafios. A mudança de registo cultural é essencial, i.e., não olhar com os mesmos olhos as formas de “pensar, sentir e agir” dos timorenses. É necessário colocar novas lentes. As sensações mais difíceis de experimentar não são contudo as físicas. Ver as condições que a maior parte vive é certamente mais difícil…

segunda-feira, 16 de outubro de 2006

Em Roma sê Romano! Em Timor sê Rai Nain Timor... (2004)




Sendo antropóloga achava que, para além de todas as vacinas que temos de tomar antes de partir em missão para os trópicos, já possuía uma: a do choque cultural. Tal pressuposto tem eventualmente raízes na ingenuidade e inexperiência. Pode também ser uma mistura de ambas, condicionada ainda por uma imagem romântica passada pelo testemunho literário de vários antropólogos e autores de áreas congéneres. Está claro que parte da responsabilidade da imagem idílica do «bom selvagem» era minha.

Antes da partir para o outro lado do mundo fiz pesquisa e contactei algumas pessoas que por lá passaram em acção humanitária, pedindo-lhes opiniões, conselhos, testemunhos da sua vivência naquela que agora é a mais jovem nação do mundo. Esta vacina estava então reforçada! Assim pressupunha eu… Para além de «beber» as experiências alheias, comecei a preparar o espírito e igualmente o corpo para a mudança. Retirei-me por alguns dias para uma casa no interior de Espanha, cortei o cabelo (mais curto ainda que há alguns meses atrás) e retirei a cor vermelha pintando por cima com o tom original. Na noite anterior à viagem preparei a mala com apenas o essencial.

Quando me encontro fora de Portugal, num contexto cultural diferente, invade-me uma utopia. Como se pudesse esfregar uma lâmpada mágica e me fosse concedido o desejo de me transformar fisicamente de forma a que não se notasse que sou estrangeira. Gostaria de poder vivenciar as outras culturas sem a condicionante que a minha presença impõe pela diferença de fenotipo. E em Timor não foi diferente: de novo fui invadida pela utopia.

Concerteza que a Antropologia contribuiu para o facto de, quando em solo timorense, tenha desenvolvido um esforço por “pensar, sentir e agir” como os seus autóctones, principalmente os do sexo feminino. Estava, contudo, consciente de que o meu aspecto ocidental não iria facilitar, correndo o risco de passar pelo ridículo do folclórico ao expressar essas intenções através do uso da sua indumentária: com uma lipa (pedaço de tecido indonésio com desenhos e cores fortes que se enrola à volta da cintura), uma t-shirt e um par de chinelos de dedo. Tinha uma tal vontade de vestir a pele dos locais, que decidi materializar essa necessidade. Na primeira viagem Dili-Los Palos (onde se ia implementar o projecto) paramos no mercado de Baucau onde comprei uma lipa. No dia seguinte fomos convidados para estar presentes numa cerimónia que iria ter lugar numa aldeia daquele distrito, onde se iriam reunir as mulheres vítimas de tortura nos tempos da Indonesia. Estava hesitante se havia ou não de ousar usar já as suas vestes. Temia que interpretassem como um abuso: uma «malae» (estrangeira) vestir como uma mulher timorense. Segui a minha voz interior e fui até à cozinha onde se encontrava naquele momento uma senhora timorense. Pedi-lhe que me ensinasse a enrolar e amarrar o pedaço de tecido à volta da cintura, de forma a que não caísse enquanto andava, ou no momento de me levantar de uma cadeira. Com muito orgulho ela exemplificou, fazendo as manobras já automáticas no tecido ainda duro por ser novo. Vesti uma t-shirt e os chinelos de dedo e já me sentia uma mulher timorense! O processo de transformação dava-se por terminado naquele preciso momento!!!.... Sentia-me muito bem naquela pele. De tal forma que passados poucos minutos tinha esquecido o que levava vestido.

No momento em que sai de casa para subir para o carro e seguir viagem, enquanto distraidamente descia as escadas de casa, ouço gritos. Erguo imediatamente a cabeça para perceber o que se passava. Era a irmã Lúcia, Madre Superiora Canossiana, que nos vinha chamar para seguirmos viagem. Percebi então o que estava a dizer, não só pelas palavras e gritinhos, mas pela sua linguagem corporal. Juntava as palmas das mãos como se estivesse a rezar, enquanto balançava a cabeça para cima e para baixo, dizendo: «Obrigada. Obrigada. Que gesto bonito vestir-se como uma timorense. Bonita barak!» (Barak quer dizer «muito» em tétum). Interpretei aquela reacção como o sinal de que a iniciativa de assumir a identidade cultural timorense pelo uso dos seus trajes quotidianos era bem aceite, vindo de uma entidade tão legitimadora naquele país como a das Madres Canossianas.

Seguimos então viagem. Estava muito animada, esquecendo de seguida o episódio, já que a beleza luxuriante da paisagem me captou a atenção. A partir desse dia, aquelas eram as roupas que usava em todas as ocasiões, mesmo nas reuniões institucionais quando ia a Dili.

Até que um dia, algo de insólito se passou. Depois de ter acedido várias vezes ao edifício da USAID (cooperação americana), chegou o dia em que os seguranças do edifício não me permitiram entrar nas suas instalações. Não percebi ao princípio o que se passava. Não compreendia a razão pela qual mantinham o portão fechado, até que deixaram outras pessoas passar, excepto a mim. Mais confusa fiquei… Pedi então que me explicassem claramente o que se passava. Até que finalmente percebi. Fiquei indignada com a justificação. Não com os guardas timorenses que me impediam de passar, já que estavam unicamente a cumprir ordens. Estava indignada com a natureza da ordem. Não me autorizavam entrar porque foram criadas novas regras de acesso às instalações daquela entidade. A partir dos serviços centrais em Washington D.C. saiu a decisão que só poderia entrar quem se apresentasse devidamente vestido!!, isto é, à «ocidental». No meu tétum (ainda com um vocabulário limitado, mas que servia para passar a mensagem) perguntava-lhes o que achavam. Como poderiam ter criado aquela regra se a maioria dos timorenses não tem dinheiro para comprar a roupa que exigem que se vista? Mais incrédula fiquei quando me foi explicado que a regra era para todas as instalações à volta do mundo dos edificios da USAID. Sabendo que em Timor, cada pessoa vive em média com um dólar por dia e que em muitos países do mundo existe igualmente pobreza extrema, como podem tomar tal decisão!!! Como?! Fiquei de tal forma indignada que dei meia volta e fui-me embora. Naquele dia não regressei ao edifício.

A indignação que sentia naquele momento não me permitiu perceber que finalmente, de certa forma, me tinha transformado num local. Fui tratada exactamente do mesmo modo que todos os outros timorenses porque me apresentava como uma autóctone. A vida encontra meios hábeis para satisfazer os nossos desejos!

sexta-feira, 15 de setembro de 2006

A estoria do crocodilo (2004)



«Um dia um jovem rapaz encontrou um crocodilo bebé numa lagoa que se esforçava por chegar até ao mar. Tentava, tentava, mas não conseguia porque já estava muito cansado. O rapaz, com pena, pegou nele e levou-o até ao rebentamento das águas. O crocodilo ficou tão agradecido que lhe prometeu que sempre que quisesse viajar bastava chamá-lo e ele o transportaria no seu dorso. Assim, o rapaz quando tinha vontade de viajar deslocava-se até à beira-mar e chamava o crocodilo três vezes. Ao longo dos anos fizeram inúmeras viagens juntos, fortalecendo-se uma amizade. Mas o crocodilo não deixava de ser crocodilo e o rapaz não deixava de ser humano, pelo que de vez em quando o crocodilo sentia um desejo incontrolável de comer o rapaz. Incomodado com esse impulso quase incontrolável o crocodilo decidiu desabafar com os outros animais, que indignados lhe disseram para não comer o rapaz, já que tinha sido muito generoso com ele ao salvar-lhe a vida. O crocodilo sentiu-se muito envergonhado, decidindo controlar o seu ímpeto e continuou a transportá-lo em incontáveis viagens até ficar muito velhinho. Mesmo assim, sentiu que nunca conseguiria compensar a generosidade do rapaz e antes de morrer decidiu transformar-se num pedaço de terra onde o rapaz lá poderia viver. Esse território é a ilha de Timor, que ainda hoje tem a forma do crocodilo, estando povoado pelos descendentes do rapaz que herdaram as suas qualidades de generosidade e amizade e o sentimento de gratidão do crocodilo». Hoje em dia os timorenses chamam ao crocodilo «avô» e sempre que atravessam o rio gritam: “Crocodilo sou o teu neto, não me comas”. Este mito caracteriza de alguma forma o timorense. Ajudou-me a perceber melhor algumas atitudes deste povo que em muitas ocasiões nos conquista e noutras nos atemoriza, com reacções que custam a encaixar nos padrões culturais de um ocidental. Esta lenda permitiu-me interpretar a simpatia espontânea do timorense, a sua postura humilde e disponível e a sua impetuosidade revelada em algumas situações que (nós, como ocidentais, não percebemos muito bem porquê) deixa o seu lado “selvagem” tomar lugar. No contacto com este povo, assisti a momentos em que o timorense deixava emergir por vezes o personagem do crocodilo, outras vezes do rapaz.

Depois de alguns anos a trabalhar numa organização humanitária internacional, desenvolvendo principalmente projectos de âmbito nacional na zona do grande Porto, em Março de 2004 chegou o momento de fazer as malas e partir até ao outro lado do mundo. Timor era o destino final... Timor encontra-se de novo um pouco escondido. Não me refiro apenas à dimensão geográfica. A distância é tornada mais longínqua pelas nossas frágeis memórias. Mas quem outrora passou por este pedaço de terra em forma de crocodilo não é capaz de a esquecer. Timor tem uma magia que só pode ser percepcionada pela experiência e traduzida pela saliva quente que trespassa entre os dentes e a língua. Por isso antes de partir fui ao encontro de quem por lá passou em funções humanitárias, deserta e sedenta que me sentia de relatos de experiência, isto é, de experiências contadas na primeira pessoa. Ouvi as suas histórias, vivências e sugestões de como preparar a viagem (e aqui não falo da de avião!). A minha experiência concreta deu-se no âmbito da implementação de um programa de saúde materno-infantil onde levava na bagagem o manuscrito de um projecto, um punhado de recomendações, algumas trocas de roupa e pouco mais, despindo a pele que tinha, revestindo-me em parte com a dos timorenses. A transformação começou a dar-se ainda por cá. Primeiro retirando a cor vermelha do cabelo, pintando com o tom original; no terreno vestindo a lipa (peça que as mulheres e os homens timorenses habitualmente usam e que se assemelha a uma larga saia que se enrola à volta da cintura), bem como uma t-shirt ocidental comum e chinelos de dedo. Mas os hábitos timorenses não conseguiam ocultar a minha proveniência. Continuava a ser uma mulher, estrangeira, branca, portuguesa, humanitária, antropóloga e sozinha em missão. Mulher numa cultura em que os homens têm o papel principal e a mulher se vê remetida a um papel secundário e inferior; estrangeira cujo termo tem uma carga de progresso e “dinheiro em abundância”; branca que é sinónimo de exotismo; portuguesa faz subir na classificação de riqueza; humanitária sobe ainda mais um degrau neste patamar de abundância, dando-lhe a tónica de responsabilidade e obrigação do dar, no sentido de equilibrar o desnível existente entre os países ricos e pobres; antropóloga algo de estranho e erudito; sozinha sinónimo de maior fragilidade - o que nos faz voltar ao início e reforça ainda mais o tom de vulnerabilidade, porque sou mulher. Ingredientes suficientes para desencadear nos descendentes do rapaz, ora o «crocodilo» ora o «rapaz».

Nas preparações para a partida em missão faz parte da lista de coisas a fazer ir à consulta do viajante onde passamos por uma série de exames médicos e as habituais vacinas que ninguém gosta. De tantas vezes nos picarem a agulha nos braços, quando saimos da consulta mais nos sentimos um coador! Feita uma adequada pesquisa do povo e sua cultura, equipando-me dos conhecimentos técnicos, auscultando os relatos das experiências na primeira pessoa de quem por lá passou em contexto humanitário, despindo os ícones ocidentais vísiveis e não visíveis, tomando as precauções clínicas e sanitárias, pensava que tinha efectuado um bom «trabalho de casa». Aliado a tudo isto com a minha formação de base e contacto cultural noutros cantos do planeta tinha a ilusão que possuia a vacina mais poderosa: a vacina contra o choque de culturas... É fácil perceber que em pouco tempo essa ingenuidade foi substituída por outro choque: o choque com a realidade. Não será também difícil concluir que afinal o feitiço do mito do crocodilo não deixa o estrangeiro escapar dele, e que tanto o autóctone como o visitante ora vestem o personagem do rapaz, ora o do crocodilo...

O momento em que mudei as lentes para ver com outras tonalidades o que se passava à minha volta teve lugar no fim do primeiro mês de estadia. Até essa altura tinha dificuldade em manter os maxilares fechados, do deslumbre causado pela beleza que me rodeava: a natureza luxuriante na época das chuvas, a riqueza cultural, a diferença observada em cada relance... Até que fui colocada à prova pela primeira vez. Tendo que abrir um concurso de empreitada para construção de uma casa para acolher mães e crianças, no momento em que foi anunciada a empresa vencedora as restantes treze fizeram-me uma visita surpresa ameaçando protesto. Eram bastantes homens dispostos em círculo, fazendo questão de demonstrar o seu desagrado, tanto através de linguagem verbal, como não-verbal. Estavam zangados e armados com catanas, fazendo-se expressar num tom pouco amigável, alegando irregularidades nos métodos de selecção. Senti-me literalmente entre a catana e a parede. Estava consciente da vulnerabilidade da minha condição num país em que ninguém me conhecia e com todas as agravantes já enumeradas: mulher, estrangeira, ... Estando nesse momento em reunião com a empresa vencedora, não os recebi nesse dia e marquei encontro para o seguinte. Com os ânimos mais calmos explanei-lhes de uma forma bem peremptória, e sem margem para dúvidas, as razões técnicas que levaram à eleição dos vencedores. Tanto estes homens como eu percebemos que aquilo que se vê a olho nu conduz-nos a erros de avaliação, mesmo que os mecanismos internos de compreensão de ambas as partes sejam difíceis de descortinar. Eles pensavam que conseguiriam inverter os resultados a seu favor porque estavam perante uma mulher, estrangeira, branca, portuguesa, humanitária, antropóloga e sozinha em missão. Eu deixei que a violência e ira que expressavam me levasse a crer que continuariam com a sua postura, mesmo no momento da minha partida ao fim de nove meses. Para minha surpresa alguns daqueles que me fizeram temer pela vida, no momento da despedida eram meus aliados no propósito que me levou até à ilha em forma de crocodilo: diminuir as mortes das mães e das crianças num distrito com mais de 60 mil habitantes.